segunda-feira, junho 05, 2006

O Sonho do Monstro – Parte I

A atrocidade é reconhecida tanto pela vítima como pelo perpetrador, por quem fica a conhecer o acto, por mais remoto que este seja. A atrocidade não tem desculpas, nenhum argumento mitigador. A atrocidade nunca equilibra ou rectifica o passado. A atrocidade meramente arma o futuro para mais atrocidades. Auto perpectua-se em si mesma – uma forma monstruosa de incesto. Quem cometer uma atrocidade também comete as futuras atrocidades criadas pela sua.
F. Herbert

Existe uma fina linha no manancial humano que a crítica parece não ter autorização para atravessar. “Não se fala mais disso.” “Essa conversa ofende-me.” “Quem é você para dizer isso?” Ouvimos isto muitas vezes. Quem faz perguntas. Quem quer esmiuçar um assunto para tentar trazer à luz os factos. Os factos são uma chatice. Os factos, muitas vezes, deitam por terra coisas muito enraizadas em nós e não as substituem por nada tão sólido. Deixam incertezas. E viver na incerteza é brutalmente difícil. E se acontecer todos os dias, pior. Pequeninos contra uma paisagem estrelar, agarramo-nos a um pai/mãe divino para prosseguirmos o caminho mais resguardados. Como aquele miúdo que tem que atravessar uma alameda escura e começa a assobiar. O assobio é um amuleto. Protege-o. De quê, ninguém sabe. É isso que é uma crença. A confiança absoluta em palavras que não podem ser provada, que nunca foram testadas, e que para podermos manter a crença não podem mesmo ser testadas.

Por outro lado, o método científico exige-nos que critiquemos todas as teorias, com cepticismo e desconfiança. Que as testemos até as destruirmos ou até podermos dizer que possivelmente isto ou aquilo é verdade. Mas aceitando sempre a possibilidade de que noutro lado do universo, esta nossa verdade não funcione. A ciência, tal como o homem é composta de falhas seguidas, de tactear no escuro, de bater contra paredes que se mostram impossíveis de escalar, de incertezas, de mais perguntas quando finalmente respondemos a uma, de espanto espiritual não religioso, de assombro pela maravilha mecânica das coisas. A ciência mantém-nos numa incerteza nervosa, procurando novas respostas. Desaponta-nos, quando já sonhamos com algo e nos é provado errado. É uma ferramenta extraordinária que nos permite ter aviões, pace-makers, operações aparentemente milagrosas, ver outros planetas. Usamo-la muitas vezes para maus fins, mas não é culpa da ciência, como alguns dizem, é culpa de homens descuidados e ignorantes.

Durante milhares de anos, o cepticismo e a crítica foram muito mal vistos pelo poder. Ainda hoje são, mas já não se queimam pessoas em praças públicas com tanta facilidade. Pensa-se que foram queimadas pela Igreja Católica quase meio milhão de mulheres acusadas de serem bruxas em toda a Europa. Desde a tenra idade até anciãs. Bastava para tal uma acusação. Depois arrancava-se a confissão por métodos que nem me apetece enumerar. A recolha de provas, o cruzamento de testemunhos, a experimentação para igualar resultados não era necessária nem desejada. Os poucos corajosos que tentaram fazer isso acabaram muitas vezes na fogueira a fazer companhia à bruxas. Mulheres que estavam a dormir com os seus maridos e eram acusadas de estar a fazer um ritual nos bosques eram queimadas à mesma. Um bispo simpático explicava ao marido que a mulher que estava pacificamente consigo na cama não era uma mulher. Era um demónio disfarçado. Era portanto impossível argumentar. Além disso a igreja confiscava os bens de todas as bruxas e familiares, o que tornava a coisa ainda mais perversa e mais apetecível. Se muita gente acreditava ter visto um demónio a voar sobre o telhado de uma casa, o facto passava a existir: se tanta gente diz que viu uma coisa, essa coisa tem por força que ser verdade. E a partir do momento em que há uma massa de gente suficiente, começa a ser quase perigoso duvidar do facto. “Oiça! Quem é você para duvidar?”

As mesmas pessoas que cospem na ciência quando esta diz que não fomos criados, mas que existe uma Lei da Evolução, são aquelas que utilizam os brinquedos que a ciência nos ofereceu, que usam as invenções médicas que existem porque há cientistas. Cientistas que acreditam no método científico e não em crenças. Que sabem calcular a superfície de sustentação que permite a um avião de mil toneladas levantar voo. Que podem calcular ao minuto um eclipse com tabelas matemáticas e que se recusam a fazer profecias absurdas sobre o fim do mundo ou a chegada do anti-cristo. Sempre achei estranho que os padres andassem de automóvel. O automóvel é um milagre da ciência, a mesma ciência que critica e nega uma enorme quantidade de coisas que está na Bíblia e em outros livros sagrados.

O santo sudário, as aparições, os milagres são investigados por duas linhas distintas de investigadores. Os Investigadores da Igreja e os Investigadores da Ciência. Alguns deles cristãos. Acontece sempre o mesmo. A Igreja arranja provas para o milagre que a ciência não encontra. A Igreja não precisa de experimentação, análise, procura de erro. A ciência precisa. E agora o mais estranho acontece. As vozes das massas viram-se contra a ciência. Chamam-lhe fria, afirmam que há coisas para as quais a razão não serve. Chamam-lhe a prova pela fé. Nunca vi nada em que não quisesse colocar as frias pinças da ciência. Tanto quero eu, como todas as pretensas bruxas que foram queimadas por esta ideia de que se pode provar coisas pela fé.

Durante muito tempo, demónios, dragões, fadas, espíritos e anjos passearam entre nós, dando bons e maus conselhos aos homens. Num mundo monótono, a fantasia e a alucinação criavam mitos que ficaram enraizados no nosso subconsciente. Quando o iluminismo apareceu, estas criaturas tornaram-se menos importantes e foram substituídas pelos extra-terrestres. Primeiro os marcianos, por causa da popularidade dos telescópios caseiros do Séc. XIX. Depois os discos voadores e os raptos feitos por alienígenas na América fulgurante e moderna do pós segunda guerra. Quando Marte se mostrou nua e Vénus uma caldeira incandescente, os OVNIS perderam alguma força. Os cientistas tinham mais uma vez desiludido os sonhadores. Mas não por muito tempo, pois quem entra numa livraria encontra uma panóplia de para-ciências inacreditável. Todas elas a prometerem maravilhas. São os anjos da guarda. Os cristais curadores. Os métodos da Dianética. Os espíritos bons. Um sem número de disciplinas que apenas têm uma coisa em comum. Não resistem ao método científico.

A má utilização da ciência tem criado atrocidades inomináveis. Mas não é a ciência que o faz. É o homem. O mesmo homem que utiliza a fé para ir criando outras tantas atrocidades. Compreendo a necessidade de crer em algo melhor e maior. De poder ter certezas para colocar os meus pés de forma firme em terreno bom. Quando sonho, quero atingir o mais alto possível, criar as minhas histórias sem limites de lógica, realidade, ou verdade. Mas quando quero transportar esses sonhos para coisas mais práticas, tenho de as experimentar, cortar, refazer, usando os recursos desta fantástica ferramenta que é a ciência. No dia em que me acusarem de ser um bruxo e puder escolher (oxalá possa) entre um tribunal de homens cépticos ou de homens de fé, não terei dúvidas. A ciência diz-me sempre que pode estar errada, que vai avançando de erro em erro, melhorando um pouco de cada vez. Que pode recuar e dizer amanhã que o que disse hoje estava errado. A ciência é humilde embora às vezes não o pareça. As religiões dizem que são a voz de Deus. “Na bíblia está toda a verdade.” Não há margem de manobra. Não se discute com Deus. Não é necessário experimentação, prova, porque não há razão para a prova. A verdade é a verdade. As religiões não são nada humildes embora professem a humildade.

Qual é a razão de algo tão ilógico como uma religião ter tantos seguidores? A razão encontra-se nos nossos sonhos, diz a ciência.

Imagem de Óleo de Paul Jaquays posteriormente trabalhado digitalmente.

Publicado por "Provavelmente Talisca" no Blog
Mértola