segunda-feira, junho 05, 2006

O Sonho do Monstro – Parte II

O Que Faço Eu Aqui – Leonard Cohen

Não sei se o mundo mentiu
Eu menti
Não sei se o mundo conspirou contra o amor
Eu conspirei contra o amor
A atmosfera de tortura não é reconfortante
Eu torturei
Mesmo sem a nuvem como um cogumelo
Ainda assim eu teria odiado
Escutem
Eu teria feito as mesmas coisas
Mesmo que não houvesse morte
Não me deterei como um bêbedo
Sob a pancada fria dos factos
Eu recuso o álibi universal.

Como uma cabina de telefone vazia que cruzamos à noite
E recordamos
Como os espelhos do átrio de um cinema que consultamos
Apenas à saída
Como uma ninfomaníaca que se une a milhares
Numa estranha irmandade
Eu espero
Que cada um de vós confesse.

Os sonhos são um continente ainda por descobrir. Segundo alguns especialistas nós nunca paramos de sonhar. Tanto enquanto estamos a dormir, como quando estamos acordados. O que se passa é que acordados a nossa consciência tapa os sonhos. Como lanternas dentro de um quarto escuro, que se vêem a passarinhar. Mas no momento em que afastamos as pesadas cortinas e a luz do sol entra, deixamos de as ver. Elas estão lá, a sua luz existe, mas é engolida pela luz do sol – a nossa mente acordada.

Às vezes quando estamos absortos sonhamos acordados, os sonhos tornam-se mais visíveis. Chamamos-lhes pensamentos “piratas”, não sabemos de onde vêm, às vezes nem parecem nossos. Quando estamos muito cansados, febris, demasiado angustiados, medicados ou sob a influência de álcool ou estupefacientes temos delírios, visões, alucinações. Ao contrário do que é comum pensar-se, todos nós experimentamos estes delírios de vez em vez. É coisa normal. A maior parte das vezes são inócuos, esquecemo-los facilmente. Mas às vezes não. São poderosos. Imprimem na nossa memória imagens que não existem mas que são muito vívidas, que nos levam a considerar a sua realidade. E como as alucinações são muito oníricas é fácil torná-las numa coisa transcendental. Além disso a realidade engana-nos muitas vezes.

Já estive sentado num muro mais de cinco minutos a ver uma estranha criatura a fazer movimentos muito estranhos. Parecia-me uma fada. Se não tivesse ido lá ver, teria ficado com essa imagem para sempre. Era um saco de plástico preso a umas silvas, de tal forma, que parecia um corpo feminino com asas. Se eu tivesse bebido uns copos… tinha história. Se estivesse acompanhado por mais alguém na mesma situação, não só podia afirmar que tinha visto uma fada como teria uma testemunha abonatória. E as testemunhas são de importância capital. As testemunhas dão peso à história. E não podemos chamar mentirosos a toda a gente. Acredito que muitas das pessoas estão convencidas do que dizem. O problema é a falta de sentido crítico. De ajuizar a experiência porque se passa. Uma mentira contada repetidas vezes passa a ser uma verdade. E os seres humanos são crédulos – e se a fantasia lhes interessar mais crédulos se tornam.

Um homem vai a andar na rua. Uma rapariga bem vestida aborda-o. Diz-lhe, olhe deixou cair este colar. Não, não deixei, não é meu. Ela olha em volta. Então não sei. Convence-o a dividir o valor do colar, que parece ser valioso. Vão a uma joalharia para o avaliarem. O joalheiro diz que realmente o colar vale muito dinheiro. Saem. Ela diz-lhe que fique com a jóia, porque se vai embora para o estrangeiro e não pode tratar da venda. Dê-me duzentos euros e você fica com o colar. O colar vale bem mais. O homem pensa em oferecê-lo à mulher. Uma pechincha. Aceita. Vão ao Multibanco e levanta o dinheiro. Ela vai-se embora. Mais tarde o homem descobre que o colar é falso. Ela tinha um quase igual, mas sem valor e trocou-o. Má sorte. A magia é assim, depende da vontade do mago e da crença do cliente.

Existem milhares de casos de estranhas histórias “verdadeiras”, contadas por alguém que conhece quem viu, que afirma a pés juntos que é verdade, mas nas quais estranhamente não há provas. Nenhuma. E não falo só de provas materiais. Reparem nos ETs que nos visitam. Que dão aos seus escolhidos mensagens para distribuírem. “O fim do mundo vem aí.” “Têm que se amar e acabar com as guerras.” “Se acabarem com a camada de ozono vão-se extinguir.” Claro que é fixe eles preocuparem-se connosco, mas chateia-me que só tragam novidades que já conhecemos. Porque é que não nos avisaram da camada de ozono nos anos quarenta e cinquenta em que ninguém na terra ainda se preocupava com isso? Porque é que não nos avisaram do HIV quando ele estava no início e ainda não era uma grande preocupação? Não acham estranho os ETs se preocuparem e falarem sobre coisas que são da preocupação das pessoas da zona que visitam? Os avisos contra os comunistas na América dos anos cinquenta? E se estão tão preocupados connosco, porque é que nunca ninguém apareceu a dizer, tenho aqui uma nova tecnologia impossível de obter na terra e que é absolutamente limpa e vos vai dar um jeitão? E no entanto uma quantidade enorme de pessoas acredita que eles andam entre nós e que já foi visitada. Substituímos os demónios pelos Ets, porque a sociedade tecnológica assim o impôs. Mas eis que os demónios regressam.

Nossa Senhora já se fartou de visitar a Terra para agraciar pessoas com a sua presença e milagres. Esses milagres escaparam e escapam à prova. Mas mais importante do que isso é o conteúdo das mensagens. Há as apocalípticas. O mundo vai acabar em “data tal.” Arrependam-se. Se somarmos as vezes que o mundo já teria acabado (e apenas as datas que estão anotadas por gente fidedigna) isto já teria acabado várias vezes. Depois há as mensagens completamente provincianas. “Vai ter com as pessoas e diz-lhes que têm que pagar a dízima, não pecar, dizer duas ave-marias no dia de S. Bartolomeu e consertar o telhado da Igreja.” E zás, capela é construída no local da visita. Durante muito tempo em que a venda de objectos santos era um bom negócio, a nossa senhora aparecia a alguém a comunicar onde os podiam encontrar. E finalmente há as mensagens mais encorpadas. Mas que nós não sabemos se foram ouvidas pelas testemunhas do milagre ou cozinhadas depois pelos políticos em cena. Mas aqui, mais uma vez o estranho é a crença quase imediata da maioria.

Entre as alucinações que persistem e em que nós acreditamos, entre as pessoas com problemas mentais e que se convencem e convencem os outros, entre os aldrabões que se aperceberam que a ingenuidade é um filão a explorar, pode haver casos verdadeiros. Sou incapaz de o negar. Mas não tenho provas. Nunca vi nenhuma. Há coisas estranhas que já foram estudadas e compreendidas pela ciência. Outras que não. Mas uma coisa é certa. O facto de ser impossível provar a inexistência, não cria imediatamente uma existência.

Somos incapazes de utilizando apenas os sentidos apreender a realidade. Os nossos sentidos, por muito bons que sejam, são imperfeitos. Por vezes informam-nos de coisas erradas. Por isso temos que ser cépticos. Tentar destrinçar o que é sonho e o que é realidade. Temos ferramentas para o fazer. O método científico é uma delas. Porque não o fazemos? Porque somos tão facilmente levados? Porque é que aceitamos o sonho do monstro? Por causa da nossa herança educacional. E apenas a educação, uma nova educação, nos poderá libertar disto.

Imagem de H. R. Giger.

Publicado por "Provavelmente Talisca" no Blog
Mértola